quarta-feira, 16 de março de 2011

"Rimar e Cantarolar" - apresentação em festa

A sala de eventos da Biblioteca Municipal Manuel Alegre foi pequena para os receber a todos: amigos, familiares, (ex)alunos e, desta vez, muitas crianças. Todos muito curiosos para saberem o que dizia (ou o que cantava...) o meu livro.





"Rimar e Cantarolar" ganhou vida  pela voz da turma de alunos do ensino articulado do Conservatório de Música de Águeda, e pela arte e trabalho dos  professores Joaquim Vidal,  Miguel Rodrigues e Marta Pinto.  E foi uma festa!


As intervenções pelos-e-para-os-adultos foram alternadas com a actuação do grupo  coral e instrumental, que foi cant(arol)ando uma boa parte das rimas do livro. E, é claro, encerraram a sessão depois de "bisarem" a última canção.


Além da presença e das palavras amigas do Sr. Presidente da Câmara, que presidiu à sessão, contei com a amizade e com o saber de João Manuel Ribeiro, que fez a apresentação do meu trabalho. Podem ler a sua opinião aqui.

Deixo-vos com a explicação da génese do livro, cuja leitura pôs fim às intervenções.

Para dar conta do processo criativo que presidiu a este livro, convido-vos para uma dupla viagem: um primeiro circuito, na verdadeira acepção da palavra, através do tempo: do presente ao passado, com inversão de sentido, para voltar, de novo, ao presente; a este sobrepõe-se um segundo percurso, que seguirá do último poema ao primeiro, com regresso inevitável ao ponto de partida.

Às vezes sabe bem ler um livro começando pelo fim. É este o caso.

Vamos, então, partir do último poema, que começa assim:

A saquinha das surpresas
ninguém sabe o que ela tem;
tão quietinha , tão calada,
vamos ver o que lá vem:

Esta é uma quadra que mora no tempo, sem tempo, fazendo parte do imaginário colectivo que nos preenche a infância.
Mas, como de literatura se trata, e à luz de uma abordagem metafórica que lhe actualize o sentido, a minha leitura pessoal, transfigurou esta saquinha numa bolsa de memórias. A minha saquinha de memórias. E a quadra inicial transformou-se num poema que vem a terminar assim:

Tudo isto e mais um tanto
traz a saquinha lá dentro,
tão quietinha, tão calada:
são as sobras do recreio,
é brincadeira arrumada.

De facto, o que é a memória senão um saquinho de surpresas que, consciente ou inconscientemente, vamos enchendo com retalhos significativos do filme que é, afinal, o nosso percurso de vida? Dentro dela coexiste tudo o que, de bom ou de mau, vivemos e construímos. E as brincadeiras, também. Uma saquinha “ tão quietinha, tão calada”, que duplamente nos surpreende: ou pelo momento em que se abre, ou pelo que deixa escapar, independentemente do nosso querer. Uma saquinha onde tudo se arruma numa desordem tão organizada que, no momento exacto, há sempre qualquer coisa pronta a esgueirar-se, ao mínimo sinal de abertura. Qualquer coisa que nunca é uma coisa qualquer. É sempre algo ajustado a um tempo, a um lugar, a uma circunstância.

E porquê tudo isto, para mostrar como nasceram estes poemas? Porque foi exactamente assim que aconteceu: um dia, a saquinha da memória abriu de surpresa e deixou fugir a Carolina mais a sua cantiga. Viajamos então para o primeiro poema do livro: “A saia da Carolina”. E com ela o lagarto… já cansado de rabear! Digam lá se não cantaram esta cantiga… Apanha-se, então, o comboio da infância e toca a brincar. Com palavras, claro! Foi assim que nasceu o primeiro poema.

Ora, se as palavras são cerejas, as cantigas cerejas são. Agarram-se, prendem-se, impõem-se: atrás da “Saia da Carolina” veio “O Ladrão do gato”, e logo atrás “O relógio”. Com estas últimas vieram vozes, e com as vozes a saquinha traiçoeira trouxe-me memórias mais complexas.

Faço um pequeno parênteses para relembrar uma experiência comum: quando o tempo nos vai apagando a imagem das pessoas que habitam a nossa saudade, a primeira coisa a desaparecer é a voz. Ora estas duas cantigas devolveram-me a voz das pessoas que mas cantavam. Consigo ouvi-las. Apenas cantando, as falas a minha memória já não regista. “O ladrão do gato” foi a primeira cantiga que me lembro de ter cantado. Ensinou-ma o meu pai. Consigo ouvi-lo e ouvir-me, ao ritmo da cantiga, pulando nos seus joelhos. “O relógio”, e também o “Papagaio”, cantei muitas vezes com a minha avó. A letra d’ “O relógio” sempre me fascinou:

Mandei fazer um relógio
das pernas de um caranguejo,
para contar os minutos
das horas em que te não vejo.

Um relógio feito de patas de caranguejo que, aliás, eu gostava de comer, era uma coisa verdadeiramente fascinante para a minha mente de criança. Talvez tenha sido por isso que a cantiga ficou tão bem guardada, bem lá no fundo da saquinha das surpresas. Nunca percebi por que tanto cantava a avó esta cantiga. Hoje, julgo que, inconscientemente, também ela gostaria que o relógio fosse, mesmo, feito de um caranguejo. Para contar o tempo ao contrário. Poderia, assim, devolver-lhe os momentos felizes que a vida lhe roubou no tempo cruel, contado pelos relógios comuns.

O meu pai e a minha avó eram, de facto, as duas pessoas da casa que, apesar das muitas amarguras, tinham cantigas na voz.

A saquinha da memória, porém, traiu-me, sem perdão: devolveu-me apenas a primeira quadra de cada uma das cantigas. Por mais que remexesse nas tais “brincadeiras arrumadas”, não consegui arrancar-lhe o resto dos textos. Decidi, então, reconstrui-las, à minha maneira.

Vieram depois as outras (os tais raminhos de cerejas que são as palavras…): “A vaca leiteira” que, na minha versão, era muito depreciada, mas, como nas versões mais comuns, inclusivamente na versão galega, é tão elogiada, resolvi manter o estatuto de prestígio da vaca; “Indo eu a caminho de Viseu” – que aproveitei para um passeio ao sabor da intertextualidade, para visitar uma série de histórias ditas infantis; “O trevo”, com a temática tão portuguesa da sorte, eternamente esperada, num inconsciente abandono da certeza das três folhas do trevo, para nos aplicarmos numa busca cega das quatro folhas incertas que encontraremos, ou não. E geralmente, não.

Se, na minha óptica infantil, a minha preferência pende para o “O ladrão do gato”, já numa leitura adulta é o poema da “Rosinha” aquele com o qual mais me identifico. Este poema, na sua versão tradicional, deixa passar de uma forma
sub-reptícia e maliciosa uma certa visão das relações de trabalho e amor: é um convite para ir trabalhar, envolto, maliciosamente, numa declaração de amor.

Ó Rosinha, ó Rosinha do meio,
vem comigo à eira malhar o centeio!

Uma das versões continua assim:

                         Ó Rosinha toma a teu cuidado
                         O centeio quer ser bem malhado.


                         Ó Rosinha varre bem a eira
                         Que o centeio não quer poeira.

O estribilho repete várias vezes, em ritmo certo:

Ó Rosinha, ó Rosinha do meio,
vem comigo à eira malhar o centeio!
O centeio, o centeio, a cevada,
Ó Rosinha, minha namorada!

E normalmente a Rosinha vai. Vai à primeira e às que se lhe seguem. E a partir daí vincula-se a um perfil. Como hoje é hábito dizer-se: tem perfil para... E ai das mulheres (e dos homens também) que têm perfil… Mais lhes valera terem tirado o primeiro retrato de frente! Foi o que não aconteceu à minha Rosinha, por isso o poema termina assim:

Ó Rosinha, ó Rosinha do meio,
mais valia teres dito que não!
Aceitaste o convite uma vez,
vão chamar-te mais duas ou três.

E o que é verdadeiramente espantoso no poema tradicional é que o convite para toda uma interminável “trabalheira” vem de um namorado. Que faria se o não fosse…

Tudo o que disse comprova que o poema “Rosinha” é aquele que proporciona um nível de leitura mais adulto.

Regressemos, então, ao último poema, o nosso ponto de partida: “A saquinha das surpresas”. É minha pretensão que ele espalhe uma mensagem:

- Para os que não são meninos, mas que já o foram, que ele seja um agradável pretexto para remexer a tal saquinha – e que ela lhes devolva muitas e insuspeitadas surpresas.

- A saquinha dos que agora são meninos ainda está aberta e, decerto, muito vazia. Que este(s) poema(s) os ensine(m) a “arrumar” as brincadeiras, para que, um dia, possam ter o prazer de as desarrumar, num saudável regresso ao passado. E, sobretudo, para que não deixem cair a ponte que os vai levar da infância até onde forem capazes de chegar.


Por fim, e não menos importante, uma referência aos “poemas visuais” de Rute Reimão: também eles convidam à viagem, como sugerem as ilustrações das guardas: uma fuga leve e rebelde, em avião de papel. Com ele, irão os meus poemas correr mundos e tempos, pela mão de quem o pilotar.

Estes "poemas visuais" entendo-os, também, como um casamento feliz entre o ontem e o agora. Os papéis, os tecidos, os botões, a caligrafia… tudo isto, também, saído da saquinha das surpresas que serão as muitas gavetas, que certamente compõem o paraíso de memórias que será o ateliê da Rute. Tudo recriado para nos ser devolvido pela modernidade do traço.
Agradeço à Rute a materialização dos meus poemas, numa recriação visual cheia de frescura e poesia, que, na sua complexa simplicidade funcionam como motivo para novos sentidos, num consistente diálogo com o texto, que o leitor irá certamente descobrir. Tudo sabiamente envolvido pelas tonalidades brandas das coisas afagadas pelo tempo.

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